quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A sopa social

Depois da sua anunciada morte, chegou finalmente o verdadeiro estado social.
Pelo menos, o estado social na perspetiva deste governo.
Os locais de distribuição de sopa, e de outros alimentos baratos e supostamente quentes, vão passar de 62 para 950. É preciso fazer muita sopa para tantos pobres. E a sopa também custa dinheiro. Estima-se que sejam gastos 47 milhões de euros na massificação do sistema caritativo da distribuição da sopa aos famintos.
O governo está convencido de que esta é a melhor solução para o problema. Dar de comer a quem tem fome pode ser uma atitude relevante para o conforto da alma, de quem dá, e do corpo, de quem recebe. Mas não é solução para o problema.
E esta é a questão essencial: qual é o problema?
As pessoas têm fome. Dir-me-ão os que pensam como pensa o governo.
Mas esse não é o problema. Esse é o resultado do problema.
Anos e anos de má gestão, um sistema financeiro global falsificado, patifarias inomináveis, acordos desastrosos e a economia de rastos. Eis o problema, os problemas.
O governo tem solução para eles? Não! Prefere continuar a aplicar a receita que os causadores da sua desgraça lhe prescreveu e a fazer tudo o que lhe mandam fazer. O mais certinho possível, que é muito importante ficar bem classificados nos testes trimestrais da troika.
Como não há qualquer perspetiva de que a economia possa recuperar, pelo contrário, a asfixia é cada vez mais evidente, não será difícil prever que o upgrade do sopeiral modelo se tornará insuficiente para os dez milhões que, mais tarde ou mais cedo, se transformarão em indigentes forçados.
Agora o governo poderá contrariar todos aqueles que o acusam de destruir o estado social. O governo dá, com esta medida, provas de que não é verdade que não goste do estado social. Pelo contrário, gosta tanto que um dos seus objetivos principais é o de transformar Portugal numa imensa cantina social.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Schulz e o pão que fede

O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, criticou o facto de Portugal acarinhar os investimentos angolanos, cuja consequência, em sua opinião, só pode levar ao declínio do país, pois entende que só haverá futuro "no quadro da União Europeia".
As reações em Portugal não se fizeram esperar. Quando estamos em crise é sempre bom arranjar um bombo da festa para malhar. Se for estrangeiro, melhor. Se for alemão, ainda melhor.
E os críticos têm razão quando demonstram que Portugal não tem qualquer hipótese de desenvolvimento à custa de uma União Europeia vergada à austeridade e com um crescimento anémico. E sem que a Alemanha nada faça para alterar esta situação, entretida a olhar para o seu monstruoso umbigo.
Porém, Schulz, não fosse a tradicional hipocrisia alemã, tem razões para não ter gostado de ver Passos Coelho, de joelhos, em Luanda, a pedir pão. Porque esse pão fede a crime e a sangue.
Houvesse democracia em Angola, fossem respeitados os direitos humanos, não fosse governada por cleptocratas, os seus investimentos em Portugal seriam muito bem-vindos.
Só que, Portugal está numa encruzilhada que pode ser fatal: em termos económicos e em termos morais.
Precisa da ajuda da Europa para poder pagar as aberrantes dívidas e os indecentes juros aos agentes do capitalismo financeiro que tem dominado o mundo, mas não chega. Precisa também do investimento angolano, para vender algumas joias públicas e exportar produtos para consumo dos seus novos-ricos. E precisa de ambos desesperadamente, sob pena de morrer à míngua.
Mas, ambas as ajudas são moralmente repugnantes. Uma, porque é usurária e destrutiva de qualquer atividade económica futura; outra, porque fecha os olhos ao que se passa em Angola, é conivente com a violação constante dos direitos humanos.
É uma das desvantagens dos pobres que não têm dignidade: para sobreviver, fingem não ver, nem ouvir…nem sentir.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Oitocentos mil

É este o número do desemprego em Portugal: 800 000.
Só por si bastaria para demonstrar a incompetência dos governantes e dos patrões; a incongruência das políticas e dos mercados; a inconsistência da Europa e a decadência do capitalismo, enquanto sistema de organização económica das sociedades.
Há trinta anos, nada faria prever que, com o desenvolvimento humano e tecnológico que se estava a registar, se viesse a trabalhar mais horas, com menos direitos, e que as condições de trabalho regredissem quase como se ainda se estivesse a viver o início da primeira revolução industrial.
Hoje, utilizando tecnologia impensável há apenas umas dezenas de anos, as sociedades deveriam ter atingido um ponto de desenvolvimento, proporcionado pela produção de bens baratos e de qualidade, que permitisse o trabalho a tempo parcial generalizado e o pleno emprego.
Nada disso, no entanto, se verifica. Há desemprego, como nunca houve, e os trabalhadores são obrigados a trabalhar mais, até mais tarde e a prescindir dos direitos que conquistaram ao longo de um século.
É óbvio que tudo isto ultrapassa qualquer lógica. Porém, o poder económico e financeiro, o poder político e algum poder sindical coincidem na análise da situação e nas receitas para a ultrapassar. O que é estranho.
E, no entanto, não consegue singrar nenhuma apreciação da realidade que não se acomode à forma dominante de pensar no fenómeno e às débeis soluções propostas.
O capitalismo é corruptor por natureza. E corrompe também o pensamento e a capacidade de dissecar e criticar. É como uma droga, é tão bom ao princípio, tão fácil, mas torna-se, a pouco e pouco, uma necessidade, não podemos viver sem ele, perdemos a capacidade crítica, transforma-se no único objetivo da existência, rouba-se, mata-se por ele. E não há centros de desintoxicação ou de reabilitação.
Os oitocentos mil são o equivalente capitalista dos zombies do Casal Ventoso, são igualmente os restos de um negócio que não correu mal para todos.
A situação não vai mudar com troikas, uniões europeias, bancos centrais, empréstimos, mercados, governos ou seja lá o que for. Todas as soluções até agora propostas padecem de um pecado original: transportam em si o gene do mal que pôs o mundo neste estado.
E estes oitocentos mil em breve serão um milhão. Serão milhões. E não sabem a força que podem vir a ter. Apenas precisam de desintoxicação e de reabilitação. Só ainda não se descobriu a forma de o fazer.