De que se fala quando se fala de corrupção?
A perceção pública da corrupção em Portugal preocupa. Mais de 90% dos portugueses, de acordo com um estudo recente, acreditam que a corrupção está generalizada e que isso os afeta diretamente no seu dia-a-dia.
Há muito que os meios de comunicação social, com particular destaque para as redes sociais, elegeram o “fenómeno da corrupção” como alvo e consideram-no a causa principal de todos os males da sociedade portuguesa.
Mas será mesmo assim? Existirá afinal tanta corrupção como, com tanta facilidade e exuberância, se propala?
Na verdade, o facto de, na prática, os tribunais não funcionarem para os crimes de corrupção, contribui para que o sentimento de impunidade percebido pelo povo seja vivido de forma intensa e acenda o rastilho da revolta. Perante a constatação de que alguns políticos, banqueiros, empresários capitalistas e poderosos em geral roubam, mentem, manobram e ainda se divertem, sem que sofram, aparentemente, qualquer consequência dá cabo da paciência ao português comum.
Quando se passa a vida a contar os tostões e a cortar em tudo o que dê prazer mas que custe dinheiro, é legítimo atribuir a responsabilidade aos ladrões que nunca têm castigo. Mas, inconscientemente, o que faz reagir a maioria é também a inveja. Quase sempre nos esquecemos do fator inveja quando a razão está do nosso lado. A força da razão esconde os baixos sentimentos que por vezes, agarrados às suas pernas, conseguem chegar onde apenas aquela tem o direito de chegar.
Muitos dos que criticam os corruptos, no mesmo contexto em que estes a praticam, seriam ainda mais corruptos. O que reclamam é da desigualdade de oportunidades no acesso aos lugares em que hipoteticamente poderiam usufruir das vantagens económicas da corrupção.
Sinceramente, não me parece que Portugal seja um país mais corrupto do que era há 20 ou 30 anos. Ou que, em relação à condenação da corrupção, os tribunais sejam piores do que eram. Não podemos confundir a perceção que a sociedade tem da corrupção com a própria corrupção. Os media, cujo papel na divulgação de casos de presumível corrupção aumentou exponencialmente, contribuíram de forma significativa – até pela amplificação acéfala das redes sociais - para a esta perceção.
Nem sequer me parece que a grande corrupção, a praticada pelos poderosos, seja diferente do que era. Mudaram-se algumas circunstâncias e, consequentemente, mudaram-se alguns métodos. Como acontece em todos os crimes, o criminoso competente anda sempre dois passos à frente da lei.
Há, no entanto, e contrariando a perceção pública, um tipo de corrupção que quase despareceu de Portugal. Foi a pequena corrupção.
Quem não se lembra do tempo em que nos serviços públicos quase não se conseguia obter nada, fosse a marcação de um a escritura, de um registo, de um licença, de um papel, de uma assinatura ou de um carimbo sem “fazer uma atenção”, ao contínuo ou ao porteiro, ao escriturário ou ao amigo do contínuo que conhecia o marido da funcionária que tinha alguma influência sobre a decisão? Isto, praticamente, acabou. Por via da lei e da modernização e transparência do Estado.
No privado, por outro lado, a consequência dessas medidas, designadamente na pequena fuga ao Fisco, acabou com muitas das trafulhices que redundavam no não pagamento de impostos e a que a grande maioria se dedicava com espavento e benefício.
A revolta de uns e de outros, que deixaram de usufruir de regalias criminosas, embora socialmente aceites e acarinhadas, fez direcionar e aumentar a sua atenção para aqueles que, cometendo o mesmo tipo de crimes, mas a uma escala superior, continuavam a desenvolver a sua atividade, ampliando-a até, sem quaisquer consequências.
Aqui entra o fator inveja: então eles podem e eu não posso? A crítica é generalizada, mas, na realidade, o desvalor social da ação criminosa é inexistente. Agora o que conta é apenas o autor. Já nem o valor dos atos alegadamente criminosos - que tanto distinguia os grandes corruptos daqueles que apenas faziam um jeitinho - é fator diferenciador.
É a guerra aberta dos que foram obrigados a deixar de ser corruptos contra os que ainda são corruptos. Não por razões morais, mas apenas porque não se souberam adaptar aos tempos modernos.
No meio da guerra está o cidadão não corrupto nem corruptível, que no passado foi obrigado a pagar a uns e a outros, e que agora só paga, através dos impostos, aos que dominam o mercado da corrupção. Entre a boa corrupção e a má corrupção. Entre a pequena corrupção, dos pequenos e miseráveis, e a grande corrupção, dos grandes e poderosos, apenas têm uma certeza: tanto uns como outros andam a viver há demasiado tempo à sua custa. Esse tempo terá um fim.
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