Invariavelmente, qualquer
tentativa de abordar o assunto acaba muito rapidamente com a habitual
conclusão: Portugal não é um país racista. Se continuarmos a insistir na
conversa e a relatar casos de evidente racismo, atirar-nos-ão com o já clássico
“eu até tenho um amigo que é preto”.
Há dois portugais, no que toca ao
racismo em relação aos negros – incluindo os que evidenciam vestígios africanos
-, que ocupam o mesmo espaço físico e são constituídos pelas mesmas pessoas: o
Portugal que se expressa em público e que não é, aparentemente, racista e o
Portugal privado que se manifesta nas conversas entre brancos e que é,
intrinsecamente, racista. Na verdade, há ainda um outro pequeno Portugal, o dos
que não são, de todo, racistas, mas esses são tão poucos que nem vou falar
deles.
Nem vou hoje abordar o tema do racismo
em relação aos ciganos. Neste caso há apenas um Portugal: o que é e se expressa
de forma racista, seja em público seja em privado. Mas esse é tema para um
outro dia.
O mito do Portugal não-racista, cujos
cidadãos se miscigenaram em todos os cantos do mundo com todos os povos, que se
adaptaram como nenhuns a todas as realidades geográficas, étnicas e culturais e
que geraram crioulidades tropicais, é uma falácia.
O português, como todo o europeu,
é culturalmente racista. O facto de ter conquistado povos, à força e na ponta
da espada, tecnologicamente menos desenvolvidos à época, e com uma organização
social e política pouco preparada para lidar com a força bruta, a intriga e o
poder sobrenatural, e material, da cristandade, inculcou-lhe uma superioridade
que sempre considerou legítima e indiscutível.
O facto de ter procriado
proficuamente com as indígenas das terras subjugadas não deve ser interpretado
como demonstração de ausência de racismo. Pelo contrário, é mais uma prova de
poder dominante do homem branco sobre o ser humano africano concretizado na
apropriação das suas mulheres e na sua utilização – em grande parte das vezes
sem o consentimento esclarecido da vítima - enquanto objeto de prazer.
Naturalmente foram aparecendo os
filhos – que, sempre que possível, eram afastados da cultura das mães – e os
netos – que procuravam que fossem cada vez mais claros para “não atrasarem a
raça” –, e, como se sabe, a descendência amolece as convicções. O amor aos
filhos e aos netos, porque natural e pouco influenciável por contaminações
culturais, foi desde sempre invocado como mais uma prova da ausência de racismo
no relacionamento dos portugueses com os africanos. Outra falácia.
Aos portugueses que nunca saíram
de Portugal iam chegando ecos caricaturais da sua superioridade racial,
especialmente em África - ou, melhor, da suposta inferioridade racial dos
africanos - gerando com isso uma dualidade de sentimentos em relação ao
português tropical. Por um lado, a admiração pela esperteza dos conterrâneos,
por conseguirem ser dominadores e senhores, autênticos reis, de povos
miseráveis; por outro, a inveja por não estarem na mesma posição e usufruírem de
inimagináveis mordomias que o cantinho da Europa, esse sim miserável, não lhes
proporcionava.
Esta vivência de séculos
incrustou no substrato cultural português uma consciência racista não declarada
nem contestada. As manifestações que a negavam foram sendo elevadas ao grau de
verdades absolutas e o estatuto de Portugal passou a ser oficialmente o de
não-racista. Estado não-racista. Sociedade não-racista.
Nunca acreditei. Um país que coloniza
outro é, pela ordem natural das coisas, racista. O simples facto de, em
determinada altura da sua história, um povo ter a veleidade de, coletivamente,
pensar que pode governar outro porque o outro não é capaz de se governar,
comprova esta conclusão.
Já vi muito e ainda ouvi mais. Tenho a
vantagem de ser branco em Portugal.
Ao pé de mim, os outros brancos,
que não sabem que só sou branco por fora, falam livremente como se eu fosse um
deles. Nessas alturas tenho desgosto de ser branco.
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