quarta-feira, 19 de março de 2014

O racismo endémico e o branco só por fora


Invariavelmente, qualquer tentativa de abordar o assunto acaba muito rapidamente com a habitual conclusão: Portugal não é um país racista. Se continuarmos a insistir na conversa e a relatar casos de evidente racismo, atirar-nos-ão com o já clássico “eu até tenho um amigo que é preto”.

Há dois portugais, no que toca ao racismo em relação aos negros – incluindo os que evidenciam vestígios africanos -, que ocupam o mesmo espaço físico e são constituídos pelas mesmas pessoas: o Portugal que se expressa em público e que não é, aparentemente, racista e o Portugal privado que se manifesta nas conversas entre brancos e que é, intrinsecamente, racista. Na verdade, há ainda um outro pequeno Portugal, o dos que não são, de todo, racistas, mas esses são tão poucos que nem vou falar deles.

Nem vou hoje abordar o tema do racismo em relação aos ciganos. Neste caso há apenas um Portugal: o que é e se expressa de forma racista, seja em público seja em privado. Mas esse é tema para um outro dia.

O mito do Portugal não-racista, cujos cidadãos se miscigenaram em todos os cantos do mundo com todos os povos, que se adaptaram como nenhuns a todas as realidades geográficas, étnicas e culturais e que geraram crioulidades tropicais, é uma falácia.

O português, como todo o europeu, é culturalmente racista. O facto de ter conquistado povos, à força e na ponta da espada, tecnologicamente menos desenvolvidos à época, e com uma organização social e política pouco preparada para lidar com a força bruta, a intriga e o poder sobrenatural, e material, da cristandade, inculcou-lhe uma superioridade que sempre considerou legítima e indiscutível.

O facto de ter procriado proficuamente com as indígenas das terras subjugadas não deve ser interpretado como demonstração de ausência de racismo. Pelo contrário, é mais uma prova de poder dominante do homem branco sobre o ser humano africano concretizado na apropriação das suas mulheres e na sua utilização – em grande parte das vezes sem o consentimento esclarecido da vítima - enquanto objeto de prazer.

Naturalmente foram aparecendo os filhos – que, sempre que possível, eram afastados da cultura das mães – e os netos – que procuravam que fossem cada vez mais claros para “não atrasarem a raça” –, e, como se sabe, a descendência amolece as convicções. O amor aos filhos e aos netos, porque natural e pouco influenciável por contaminações culturais, foi desde sempre invocado como mais uma prova da ausência de racismo no relacionamento dos portugueses com os africanos. Outra falácia.

Aos portugueses que nunca saíram de Portugal iam chegando ecos caricaturais da sua superioridade racial, especialmente em África - ou, melhor, da suposta inferioridade racial dos africanos - gerando com isso uma dualidade de sentimentos em relação ao português tropical. Por um lado, a admiração pela esperteza dos conterrâneos, por conseguirem ser dominadores e senhores, autênticos reis, de povos miseráveis; por outro, a inveja por não estarem na mesma posição e usufruírem de inimagináveis mordomias que o cantinho da Europa, esse sim miserável, não lhes proporcionava.

Esta vivência de séculos incrustou no substrato cultural português uma consciência racista não declarada nem contestada. As manifestações que a negavam foram sendo elevadas ao grau de verdades absolutas e o estatuto de Portugal passou a ser oficialmente o de não-racista. Estado não-racista. Sociedade não-racista.

Nunca acreditei. Um país que coloniza outro é, pela ordem natural das coisas, racista. O simples facto de, em determinada altura da sua história, um povo ter a veleidade de, coletivamente, pensar que pode governar outro porque o outro não é capaz de se governar, comprova esta conclusão.

 Já vi muito e ainda ouvi mais. Tenho a vantagem de ser branco em Portugal.

Ao pé de mim, os outros brancos, que não sabem que só sou branco por fora, falam livremente como se eu fosse um deles. Nessas alturas tenho desgosto de ser branco.  

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