domingo, 23 de março de 2014

Corrupção: a boa e a má

De que se fala quando se fala de corrupção?
A perceção pública da corrupção em Portugal preocupa. Mais de 90% dos portugueses, de acordo com um estudo recente, acreditam que a corrupção está generalizada e que isso os afeta diretamente no seu dia-a-dia.
Há muito que os meios de comunicação social, com particular destaque para as redes sociais, elegeram o “fenómeno da corrupção” como alvo e consideram-no a causa principal de todos os males da sociedade portuguesa.
Mas será mesmo assim? Existirá afinal tanta corrupção como, com tanta facilidade e exuberância, se propala?
Na verdade, o facto de, na prática, os tribunais não funcionarem para os crimes de corrupção, contribui para que o sentimento de impunidade percebido pelo povo seja vivido de forma intensa e acenda o rastilho da revolta. Perante a constatação de que alguns políticos, banqueiros, empresários capitalistas e poderosos em geral roubam, mentem, manobram e ainda se divertem, sem que sofram, aparentemente, qualquer consequência dá cabo da paciência ao português comum.
Quando se passa a vida a contar os tostões e a cortar em tudo o que dê prazer mas que custe dinheiro, é legítimo atribuir a responsabilidade aos ladrões que nunca têm castigo. Mas, inconscientemente, o que faz reagir a maioria é também a inveja. Quase sempre nos esquecemos do fator inveja quando a razão está do nosso lado. A força da razão esconde os baixos sentimentos que por vezes, agarrados às suas pernas, conseguem chegar onde apenas aquela tem o direito de chegar.
Muitos dos que criticam os corruptos, no mesmo contexto em que estes a praticam, seriam ainda mais corruptos. O que reclamam é da desigualdade de oportunidades no acesso aos lugares em que hipoteticamente poderiam usufruir das vantagens económicas da corrupção.
Sinceramente, não me parece que Portugal seja um país mais corrupto do que era há 20 ou 30 anos. Ou que, em relação à condenação da corrupção, os tribunais sejam piores do que eram. Não podemos confundir a perceção que a sociedade tem da corrupção com a própria corrupção. Os media, cujo papel na divulgação de casos de presumível corrupção aumentou exponencialmente, contribuíram de forma significativa – até pela amplificação acéfala das redes sociais - para a esta perceção.
Nem sequer me parece que a grande corrupção, a praticada pelos poderosos, seja diferente do que era. Mudaram-se algumas circunstâncias e, consequentemente, mudaram-se alguns métodos. Como acontece em todos os crimes, o criminoso competente anda sempre dois passos à frente da lei.
Há, no entanto, e contrariando a perceção pública, um tipo de corrupção que quase despareceu de Portugal. Foi a pequena corrupção.
Quem não se lembra do tempo em que nos serviços públicos quase não se conseguia obter nada, fosse a marcação de um a escritura, de um registo, de um licença, de um papel, de uma assinatura ou de um carimbo sem “fazer uma atenção”, ao contínuo ou ao porteiro, ao escriturário ou ao amigo do contínuo que conhecia o marido da funcionária que tinha alguma influência sobre a decisão? Isto, praticamente, acabou. Por via da lei e da modernização e transparência do Estado.
No privado, por outro lado, a consequência dessas medidas, designadamente na pequena fuga ao Fisco, acabou com muitas das trafulhices que redundavam no não pagamento de impostos e a que a grande maioria se dedicava com espavento e benefício.
A revolta de uns e de outros, que deixaram de usufruir de regalias criminosas, embora socialmente aceites e acarinhadas, fez direcionar e aumentar a sua atenção para aqueles que, cometendo o mesmo tipo de crimes, mas a uma escala superior, continuavam a desenvolver a sua atividade, ampliando-a até, sem quaisquer consequências.
Aqui entra o fator inveja: então eles podem e eu não posso? A crítica é generalizada, mas, na realidade, o desvalor social da ação criminosa é inexistente. Agora o que conta é apenas o autor. Já nem o valor dos atos alegadamente criminosos - que tanto distinguia os grandes corruptos daqueles que apenas faziam um jeitinho - é fator diferenciador.
É a guerra aberta dos que foram obrigados a deixar de ser corruptos contra os que ainda são corruptos. Não por razões morais, mas apenas porque não se souberam adaptar aos tempos modernos.
No meio da guerra está o cidadão não corrupto nem corruptível, que no passado foi obrigado a pagar a uns e a outros, e que agora só paga, através dos impostos, aos que dominam o mercado da corrupção. Entre a boa corrupção e a má corrupção. Entre a pequena corrupção, dos pequenos e miseráveis, e a grande corrupção, dos grandes e poderosos, apenas têm uma certeza: tanto uns como outros andam a viver há demasiado tempo à sua custa. Esse tempo terá um fim.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O racismo endémico e o branco só por fora


Invariavelmente, qualquer tentativa de abordar o assunto acaba muito rapidamente com a habitual conclusão: Portugal não é um país racista. Se continuarmos a insistir na conversa e a relatar casos de evidente racismo, atirar-nos-ão com o já clássico “eu até tenho um amigo que é preto”.

Há dois portugais, no que toca ao racismo em relação aos negros – incluindo os que evidenciam vestígios africanos -, que ocupam o mesmo espaço físico e são constituídos pelas mesmas pessoas: o Portugal que se expressa em público e que não é, aparentemente, racista e o Portugal privado que se manifesta nas conversas entre brancos e que é, intrinsecamente, racista. Na verdade, há ainda um outro pequeno Portugal, o dos que não são, de todo, racistas, mas esses são tão poucos que nem vou falar deles.

Nem vou hoje abordar o tema do racismo em relação aos ciganos. Neste caso há apenas um Portugal: o que é e se expressa de forma racista, seja em público seja em privado. Mas esse é tema para um outro dia.

O mito do Portugal não-racista, cujos cidadãos se miscigenaram em todos os cantos do mundo com todos os povos, que se adaptaram como nenhuns a todas as realidades geográficas, étnicas e culturais e que geraram crioulidades tropicais, é uma falácia.

O português, como todo o europeu, é culturalmente racista. O facto de ter conquistado povos, à força e na ponta da espada, tecnologicamente menos desenvolvidos à época, e com uma organização social e política pouco preparada para lidar com a força bruta, a intriga e o poder sobrenatural, e material, da cristandade, inculcou-lhe uma superioridade que sempre considerou legítima e indiscutível.

O facto de ter procriado proficuamente com as indígenas das terras subjugadas não deve ser interpretado como demonstração de ausência de racismo. Pelo contrário, é mais uma prova de poder dominante do homem branco sobre o ser humano africano concretizado na apropriação das suas mulheres e na sua utilização – em grande parte das vezes sem o consentimento esclarecido da vítima - enquanto objeto de prazer.

Naturalmente foram aparecendo os filhos – que, sempre que possível, eram afastados da cultura das mães – e os netos – que procuravam que fossem cada vez mais claros para “não atrasarem a raça” –, e, como se sabe, a descendência amolece as convicções. O amor aos filhos e aos netos, porque natural e pouco influenciável por contaminações culturais, foi desde sempre invocado como mais uma prova da ausência de racismo no relacionamento dos portugueses com os africanos. Outra falácia.

Aos portugueses que nunca saíram de Portugal iam chegando ecos caricaturais da sua superioridade racial, especialmente em África - ou, melhor, da suposta inferioridade racial dos africanos - gerando com isso uma dualidade de sentimentos em relação ao português tropical. Por um lado, a admiração pela esperteza dos conterrâneos, por conseguirem ser dominadores e senhores, autênticos reis, de povos miseráveis; por outro, a inveja por não estarem na mesma posição e usufruírem de inimagináveis mordomias que o cantinho da Europa, esse sim miserável, não lhes proporcionava.

Esta vivência de séculos incrustou no substrato cultural português uma consciência racista não declarada nem contestada. As manifestações que a negavam foram sendo elevadas ao grau de verdades absolutas e o estatuto de Portugal passou a ser oficialmente o de não-racista. Estado não-racista. Sociedade não-racista.

Nunca acreditei. Um país que coloniza outro é, pela ordem natural das coisas, racista. O simples facto de, em determinada altura da sua história, um povo ter a veleidade de, coletivamente, pensar que pode governar outro porque o outro não é capaz de se governar, comprova esta conclusão.

 Já vi muito e ainda ouvi mais. Tenho a vantagem de ser branco em Portugal.

Ao pé de mim, os outros brancos, que não sabem que só sou branco por fora, falam livremente como se eu fosse um deles. Nessas alturas tenho desgosto de ser branco.  

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A praia do narcisismo tímido


Faz hoje precisamente um ano que publiquei pela última vez neste blogue.
Sempre o encarei como a minha praia deserta. Um lugar onde posso esticar-me ao sol, nadar, ou mesmo fazer nudismo, sem ser observado por ninguém. Mas sempre consciente de que existe a possibilidade de alguém estar à espreita.
Há, por isso, um pouco de exibicionismo neste blogue. Não é ostensivo nem narcisista. É apenas tímido.
Mas a solidão, mesmo a espiada, enfada. Então disse adeus à minha praia deserta e parti para sítios mais frequentados. Durante um ano não voltei a esticar-me ao sol.
Agora tive saudades e voltei. Tenho falta de sol.
Vou escrever novamente.


 

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Partem jovens em aviões cheios


O país está como está e a emigração parece ser a solução para milhares de desempregados desesperados. Tomados por um ímpeto de sobrevivência, a rangerem os dentes de medo e de revolta, partem à aventura.
Os céus estão cheios de aviões e os aviões estão cheios deles. São de todas as idades, mas dizem os media que a maior parte são jovens. Os tais jovens licenciados que fizeram Portugal sair do fim das listas dos países menos instruídos do mundo ocidental. Agora partem.
A sociedade portuguesa fez um esforço enorme para os qualificar, gastou mais do que a cautela aconselharia e agora manda-os partir. E eles partem.
As televisões vão a casa dos que emigram, ajudam-nos a fazer as malas, metem-nos num táxi para o aeroporto e acotovelam-se para gravar as despedidas e as lágrimas. Os sites dos jornais económicos dão dicas sobre os melhores destinos, as burocracias, as vacinas e o envio das remessas (como soa a bafio esta palavra!).
Os que ficam, aliviados pela diminuição da concorrência, aconchegam-se na sua cobardia e esperam que a sorte lhes sorria. Mas o sorriso da sorte é murcho. Tão triste como o sorriso da morte.
Portugal foi sempre feito pelos que estão fora. Cresceu de fora para dentro. Os corajosos saem, os fracos ficam. Este é um país de pobrezinhos agarrados aos destroços da sua incompetência. Estupidamente obstinados em proteger o que julgam ter conseguido. Sem qualquer rasgo de génio ou de visão do futuro.
Os que saem, sofrem, mas libertam-se dos grilhões da tacanhez nacional, da mesquinhez pequena e vil que putrifica as vontades e dissolve as ténues tentativas de sobrepor a inteligência à estupidez.
Os que mudaram Portugal, fizeram-no a partir das Américas, das Áfricas ou das Índias com as mentes dilatadas por tanto mar e tantas gentes, com as riquezas acumuladas, conseguidas a bem ou a mal, com o desprendimento apaixonado que só o os que estão longe conseguem ter.
Se os jovens não partissem, e sendo esta a geração mais qualificada de sempre, teriam a oportunidade histórica de mudar Portugal por dentro. Mas parece que não sabem que têm essa força. Têm ferramentas intelectuais e de comunicação que nunca outros antes deles tiveram. Usam-nas, é verdade, mas de forma inconsequente. Falta-lhes o cimento que poderia torná-los indestrutíveis: a ideologia.
A sociedade perde muito com a sua saída. Aos governos até convém. É mais fácil dominar estúpidos que inteligentes. E ao capitalismo troglodita também: é mais fácil explorar ignorantes dóceis que pensantes orgulhosos.
Mas, ao contrário das gerações que ao longo dos séculos partiram, esta não fará o país crescer.
O país morrerá todos os dias um pouco mais. Triste por os seus mais promissores filhos o terem abandonado. Com saudades dos dias em que projetou neles grandes esperanças.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Astérix e os curandeiros da Lusitânia


O FMI. Sempre o FMI. Ele são relatórios. São estudos. São pareceres. São opiniões. Ora é a chefe. Ora é o superintendente para a Lusitânia. Ora são os capatazes. Ou até os sipaios. Todos têm alguma coisa a dizer, a recomendar, a propor, a ordenar, a sugerir, a mandar. Andam numa azáfama permanente à volta do moribundo, a ministrar mezinhas e a vê-lo definhar.
São curandeiros ardilosos que vivem da ignorância dos simples. Convencem os crédulos de que as ervas e os unguentos estão a resultar, enquanto esvaziam a casa de porcelanas, ouro e prata. Calmamente, peça a peça. O doente mirra, quase morre, e eles leem o futuro em entranhas de cabritos sacrificados para as cerimónias.
Veja-se o caso da anunciada reforma do Estado? O governo, mais uma vez cobardemente, pediu ao FMI que o substituísse nos propósitos desonestos de destruição do Estado. Vieram uns tipos a Lisboa, falaram com ministros e secretários de estado, voltaram à terra deles e, dois meses depois, entregaram o relatório. Simples: é preciso cortar mais 4 000 milhões!
O governo esfregou as mãos. Alguém fez o trabalho sujo por ele. Envaideceu-se. Os que lhe dão ordens, desta vez fizeram-lhe um favor. E, sendo o FMI a dizer que é preciso cortar, não seria o governo o responsável por tão absurda medida.
Depois, era só inventar uma comissão parlamentar para dar cobertura ao crime e já está.
Mas, como sempre, fizeram asneira. O relatório tem erros graves. Ninguém com um mínimo de conhecimentos ou um pingo de vergonha deu qualquer crédito a esta miserável encenação. Um dos autores foi mesmo apanhado num enredo de identidades falsas e outras trafulhices.
Reformar o Estado não deveria ser destruir o Estado. Mas, para o FMI e para o governo, é. E pelo caminho destroem os reformados, desempregam os empregados, matam os famintos e enterram os enfermos. Tudo em nome do défice, da troika e dos mercados.
E, então, voltámos aos mercados! Viva!
Se estavam à espera de manifestações populares de regozijo, enganaram-se. Ninguém percebeu o deslumbrante significado de tamanha conquista do governo e da sua famélica política de austeridade.
O capitalismo financeiro e os seus tentáculos bancários passaram, com êxito, à segunda fase do plano de saque e exultaram. Os governantes também. Está tudo a correr de acordo com os manuais. O povo ainda aguenta mais uns apertos. Afinal a obesidade não é, já, um problema nacional?
Obélix também é obeso. Em Le Devin também ele acreditou no charlatão. Ele e, praticamente, todos os habitantes da irredutível aldeia gaulesa. Como sempre, Astérix não se deixou enganar e o trapaceiro acabou por cair em desgraça. Nem no meio dos romanos se safou.
Fazes-nos falta, Astérix!

domingo, 30 de dezembro de 2012

Morte ao Estado e a quem o apoiar!


Chegámos ao fim do ano. O plano que os senhores do mundo idealizaram e mandaram aplicar ao nosso país está a resultar. Estão fartos de ganhar dinheiro com ele. Os seus executores têm sido fiéis e serão recompensados. O estado social afunda-se, o desemprego aumenta, a economia regride, mas os juros pagam-se. É o que lhes interessa.
Não sei quanto mais tempo o povo aguentará esta opressão. Mas o povo anda baralhado, e ao alinhar com a demagogia populista que nasceu com a crise, também tem sido um aliado dos opressores. A situação justifica explosões de raiva contra quem fez chegar o país a este estado, mas não pode justificar nunca os ataques que o Estado tem sofrido no meio desta balbúrdia.
Uma oisa é certa: o capitalismo financeiro mundial, cego pela sua ganância, está a acabar com o Estado. Não só com o estado social, mas com o próprio Estado!  Por uma vez juntos, Bakunine, Goldman Sachs e o populismo demagógico.
E o povo, por muitas queixas que tenha do Estado, ou melhor, dos que ocupam lugares no Estado, depende desse Estado para manter uma qualidade de vida aceitável, seja na educação,  na saúde, ou nas prestações sociais. Parece que não entende isso quando se deixa manobrar pela demagogia populista da comunicação social, incluindo os da blogosfera. Embora seja legítimo querer acabar com o Estado, devemos possuir a bagagem ideológica que sutente essa ambição e prever as consequências dessa possibilidade.
O que o povo não sabe é que os que representam o Estado também não acreditam nele. Se acreditassem não aplicariam as receitas que os seus mentores lhes fornecem, nem contribuiriam para a sua destruição. No entanto, é o que fazem. As suas políticas de diminuição do estado social, reduzindo as prestações devidas aos mais desprotegidos, destruindo o pacto social e privatizando a saúde, a educação e os bens essenciais para a sobrevivência como a água e a eletricidade, são a prova de que só o lucro interessa, o ser humano só atrapalha. E sem humanos não há Estado.
Esta teoria já fez o seu caminho, quando os pobres produziam proles intermináveis e a substituição do ser humano era tão fácil como a de um parafuso. Hoje é diferente, na Europa, a fraca taxa de natalidade não o permitirá. A Europa definha e morrerá se for por este caminho.
Bem sabemos que as civilizações e os impérios têm sempre um fim e são substituídos por outros. Mas porque temos nós de ser os seus algozes?
Se quisermos eliminar o Estado, sigamos Bakunine. Mas fujamos a sete pés do capitalismo financeiro mundial e do populismo demagógico. Saibamos distinguir entre o sonho e o pesadelo.



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O boomerang e as cabeças partidas


Finalmente, a primeira carga policial da era das manifestações contra a austeridade e a troika.
O grupinho dos arruaceiros quase-profissionais que tanto tem trabalhado para conseguir este objetivo está de parabéns. Praticamente um ano de ensaios e tentativas infrutíferas e, agora, o prémio: um arraial de chanfalhadas nas cabeças ocas e nas costas folgadas. Já mereciam, não tenhamos dúvidas. E o efeito mediático incha-lhes os frágeis egos e traz-lhes o justo, embora atrasado, reconhecimento público.
Pecaram, porém, pelo excesso de queixinhas e choraminguices, os menos ágeis, aqueles cujas cabeças tiveram de ser suturadas ou foram submetidos às formalidades legais pós-arruaça.
Mas estes tipos serão tão estúpidos que não consigam aperceber que os polícias não são os responsáveis pela dívida, nem pelo acordo com a troika, nem pela política do governo, nem pelo estado a que o país chegou?
Ter-lhes-á passado pela cabeça que aqueles polícias que eles apedrejaram durante quase duas horas são uns desgraçados como eles, com contas para pagar e filhos para criar?
Bem sabemos que o sistema utiliza a polícia para se proteger e para perpetuar o seu poder, mas quando um sistema apodrece, esboroa-se e não há polícia que lhe valha. Já vimos isso acontecer no nosso país e devíamos aprender alguma coisa com a História.
Compreendo que para esta geração, que não viveu qualquer guerra, seja motivo de orgulho a cicatriz na cabeça ou o nariz partido e que as fotos sejam exibidas e partilhadas ad nauseum pelos amigos virtuais.  Também os seus pais ou avós, depois de virem de África, ostentavam a marca deixada por um estilhaço de uma granada ou uma tatuagem num braço.
Tal como os seus pais e avós, que sofreram numa guerra alheia, os polícias foram apedrejados por uma causa que não é, certamente, a deles.
Os arruaceiros, esses, enganaram-se no alvo e correm o risco de virarem o povo contra si. Quando não sabemos direcionar a raiva, ela volta-se sempre contra nós. Os apedrejadores serão o alvo do seu boomerang. Mas só o saberão tarde de mais.
Entretanto, não longe dali, o governo ria-se baixinho e “trabalhava”. O presidente, não longe do governo, com a de cara de pau habitual, “trabalhava”. O dia estava ganho: a greve geral passou para segundo plano nos telejornais; a grande manifestação pacífica também.